Monday, October 30, 2006

O que fica e o que pode chegar


Este texto é de uma pessoa muito especial. Andava perdido no hi5, acho que merecia um lugar mais digno para ser publicado.


O que fica e o que vai - Jun. 07, 2006 at 05:43 PM
Tenho consciência que a minha capacidade de abstração da realidade esta a aumentar. Cada dia que passa faço progressos. Primeiro o que via e ouvia não me afectava, agora já não vejo nem ouço o que se passa a minha volta. Caso caia uma bomba não direi nem um ai. Estou quase a atingir o meu estado de perfeição. A minha realidade está criada, faltam alguns pormenores mínimos, aquele retoque final.

A erva está amarela e ninguém a calca há muito tempo porque os cães desapareceram, a gata já se calou, o céu está sempre azul, e até de dia tem estrelas, Vénus também faz parte. Ainda ouço o mar, não sei se o elimine ou não. Vou pensar nisso amanhã.

Gosto daquela parte onde acaba o espelho da casa de banho, onde vejo os meus olhos duas vezes, quatro eus a olharem para mim. Nao sei ainda se quero que me ouçam, mas sei que não quero que me conhecam bem. Nem eu me consigo ver quando olho.

A ventoinha do computador faz muito barulho. Mesmo quando estou longe continuo a ouvi-la. Não posso fazer nada quanto a isto. Fica assim. As colunas são pretas, gosto de lhes por a mão, quando estão ligadas.

A minha estante esta quase quase a cair, tenho que a segurar... passo algum tempo a equilibra-la, mas acho que agora já está bem. Os meus livros estão velhos mas nao têm pó, gosto deles assim, de vez em quando ponho-lhes fita-cola nas lombadas. Tiro-os, cheiro-os e volto a arruma-los. Sei alguns de cor. Poucos, só dois. Um tem muitas paginas, o outro não. Não gosto de livros emprestados nem de emprestar os meus, nem gosto dos livros novos que cheiram a novo, prefiro os que cheiram a mofo e tem as paginas um pouquinho amarelas. Tenho um exemplar da 6a edição dos Lusíadas da Porto Editora da decada de 50. Falta-lhe a contra-capa. Nunca o li. Tenho pena.

Os armários estão branquinhos e limpinhos, deitei fora todo o lixo. Alguns estão vazios, mas é bom saber que temos espaço para guardar o que há-de chegar no futuro. Quando se começa outra vez. Quando se recomeça outra vez.

Não vale a pena limpar as janelas, no dia seguinte estão sujas. Não se pode olhar por elas, não se vê tudo, mais vale abri-las e olhar directamente. E só ver o que quisermos: as nossas mentiras são melhores que as dos outros. Porque são nossas, porque sabemos que o são, porque não precisam de ser bem elaboradas.

Não quero flores, elas agora já não têm cheiro e duram mais do que um dia. São um engano. E sinceramente não vale a pena sermos enganados por flores, por muito bonitas que elas sejam.

Abro a torneira e a água sai fria, morna ou quente. Dá para escolher. Carrego no interruptor e a lampada acende-se, funciona sempre igual. Aqui não há por onde escolher, sempre é mais fácil. Afinal, há que equilibrar as coisas.

Não quero massa nem marisco, nem sardinha, nem fígado, nem tomate, nem arroz de..., só preciso de chocolate, azeitonas, batatas, leite, morangos e cerejas. Sei fazer sopa.

Mais vale desejar pouco do que ter que fazer muito. É preferivel que me canse de sonhar. Que me acomode. Como não resolvi os meus problemas e ninguém o fez por mim, desisti deles. Tenho que inventar outros, preciso de dois ou tres. Mais não.

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